A última década foi palco de uma guerra discreta entre o Menino Jesus
 e o Pai Natal. O Menino Jesus tinha sido quase completamente eclipsado 
pelo Pai Natal e há uns anos um grupo dos seus apoiantes decidiu 
contra-atacar.
                
Foi nessa altura que 
apareceram aqueles estandartes vermelhos com o Menino Jesus dourado que 
as pessoas punham nas varandas para competir com os Pais Natais todos a 
subirem pelas fachadas dos prédios, mas o Pai Natal continuou à frente 
na corrida. A razão é fácil de perceber: não há filmes onde apareça o 
Menino Jesus a descer pela chaminé e a pôr prendas nos sapatinhos. E a 
figura seria ainda mais inverosímil do que a do Pai Natal, com aqueles 
trajes menores na noite mais fria do ano.
O Pai Natal tem um ar de
 avô, de folião, é uma força da Natureza, um bom gigante. Ver um 
recém-nascido de auréola dourada e de fralda a carregar com brinquedos é
 impossível de imaginar. Nem se percebe por que razão um recém-nascido 
daria prendas a alguém, enquanto um avô a dar prendas é natural.
A
 mãe de uma amiga minha, crente fervorosa nos poderes do Menino Jesus 
(nunca percebi bem isto no catolicismo, de haver uns crentes no Menino 
Jesus, outros que põem a sua fé no Cristo crescido e outros só no 
ressuscitado, outros mais virados para a Nossa Senhora das Dores, outros
 para a Nossa Senhora de Fátima) sente qualquer referência ao Pai Natal 
como uma punhalada. “Ai o meu rico Menino Jesus”, suspira. “Já ninguém 
fala do Menino Jesus”. Disse-lhe uma vez, para a consolar, que o Pai 
Natal também era santo, que era o grego S. Nicolau numa produção 
americana, mas a referência não pareceu aliviá-la e olhou-me com ar 
desconfiado.
Primeiro pensei que a sua preferência era de ordem 
teológica, mas acabei por compreender que tem mais a ver com uma questão
 de classe e um tudo-nada com a estética. O Menino Jesus é branco e 
dourado, um anjinho rosado, sem asas mas com uma auréola que lhe dá 
ainda mais superpoderes e longos caracóis leves e louros sobre a fronte.
 Depois, nasceu já com cerca de um ano e meio, o que lhe dá um ar 
vigoroso e fofinho e um olhar vivo e doce, em vez do ar frágil e 
desconjuntado dos recém-nascidos normais. O Menino Jesus é mais queque, 
adivinha-se-lhe um enxoval de gosto irrepreensível, fitinhas azuis de 
cetim, babetes de cambraia bordados à mão, mantinhas de alpaca azul-bebé
 e ainda tem aquelas prendas de um inexcedível bom gosto dos padrinhos 
Reis Magos, naqueles cofres pequeninos de prata cinzelada, que são um 
património.
O Pai Natal pode ser simpático mas há algo de vulgar 
na sua pose. É gordo, está sempre a correr de um lado para o outro, 
sempre a chicotear as renas e a saltar pelos telhados e a carregar 
sacos. Com aquela roupa de lã e aquelas botas deve suar como um cavalo e
 cheirar como um cossaco. A sua higiene não inspira confiança e o seu 
gosto é duvidoso. Porquê a cabeleira à Demis Roussos? Com que frequência
 é que ele lavará aquele cabelo? E aquele ar rubicundo de onde virá? Não
 haverá ali algum excesso de cerveja? Isso explicaria o riso a propósito
 e despropósito. Há algo de pouco cristão naquelas gargalhadas, como 
diria Jorge de Burgos. E o excesso de peso? Por que é que tem sempre de 
falar tão alto? Há muito de novo-rico naquele espalhafato. A verdade é 
que o Pai Natal tem um ar um pouco inconveniente, nem conhecemos a 
família dele, tudo o que veste tem um ar discount e não é uma pessoa como nós.
O
 Menino Jesus é tudo o que o Pai Natal não é. É discretíssimo, lindo, 
educado, sabe estar e não se pode ser de melhores famílias.
É 
verdade que o Jesus real tinha a pele muito escura, que os seus pais 
foram escorraçados de todos os albergues e que a mãe foi obrigada a dar à
 luz num estábulo no meio dos animais, mas isso são águas passadas que 
não vale a pena estar a lembrar porque todas as famílias têm as suas 
coisas. O Menino Jesus hoje é louro, e pronto. E o pai adoptivo, 
soube-se há pouco tempo, afinal nem era carpinteiro mas sim empresário 
do sector imobiliário. E a mãe era uma verdadeira senhora, elegantíssima
 e recatadíssima, que obedece e quase não diz nada durante toda a 
Bíblia.
Para as massas que andam nos centros comerciais, o Menino 
Jesus pode ter sido eclipsado pelo Pai Natal, mas as pessoas de 
qualidade ainda sabem distinguir. O Pai Natal está para o Menino Jesus 
como um supermercado para uma loja gourmet. Pode vender mais e 
ser mais conhecido, mas quem quiser qualidade, ser servido com atenção e
 num ambiente exclusivo, prefere ir à loja gourmet. É um bocadinho mais caro, mas é outra coisa.
Mas
 este ano aconteceu uma coisa surpreendente: tanto o Pai Natal como o 
Menino Jesus andaram desaparecidos. Quase ninguém os viu. Andam os dois 
envergonhados por nos terem incitado a comprar presentes para eles 
fazerem figura junto dos nossos filhos? Ou com vergonha dos muitos 
sapatos onde nem um nem o outro irão pôr prendas na consoada. Tanto um 
como o outro sabem que o Natal deste ano será o mais triste de que há memória.
 
in http://www.publico.pt/sociedade/noticia/o-natal-mais-triste-de-que-ha-memoria-1616540